domingo, 20 de maio de 2012

Falta de água na Terra é preocupação presente e futura

Falta de água na Terra é preocupação presente e futura
"Proteger a água é cuidar do futuro da nossa espécie"

20/05/2012 - 08:00
Terra da Gente - Teresa Urban


É difícil acreditar que isso aconteça aqui, onde dois terços da superfície estão cobertos por imensos mares, rios, lagos e geleiras, sem considerar o estoque gigantesco de água subterrânea. No entanto, está acontecendo...

É verdade que apenas uma pequena parte do total é de água doce. Também é verdade que sua distribuição pela Terra é desigual. Mas estamos falando de um recurso em constante renovação, que já foi suficiente para atender às necessidades de todos os seres vivos do Planeta. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial da Água, divulgado em 2003 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), órgão responsável pelo Programa Avaliação da Água no Mundo (WWAP) afirma que, em 50 anos, entre 2 e 7 bilhões de pessoas não terão acesso à água de boa qualidade e em quantidade suficiente.


Mesmo tão grave, a ameaça pode ser resumida numa fórmula simples: gastamos mais do que temos disponível; poluímos dez vezes mais do que consumimos, e desperdiçamos uma quantidade incalculável da água que tratamos.

Existem, porém, outros elementos a serem acrescentados a esse quadro, uma vez que a água não é consumida apenas pelos seres humanos: é compartilhada com todos os outros seres vivos. Como a população humana, bilhões de exemplares das mais de 10 milhões de espécies existentes no Planeta também sofrerão os impactos da nossa poluição, do nosso excesso de consumo e do nosso desperdício. Mais: como outros bens naturais essenciais aos seres humanos, a oferta da água depende diretamente do estado de conservação dos ambientes naturais. Portanto, se os bilhões de seres vivos que compõem a diversidade dos ecossistemas naturais estão sujeitos à escassez, isso significa que suas funções ecológicas essenciais serão afetadas e há risco de colapso dos ecossistemas de água doce, comprometendo qualquer perspectiva de solução.

Identificar as causas da escassez de água no mundo é o primeiro passo para evitar tal desastre. Nas últimas décadas, duas grandes tendências dividem as discussões internacionais sobre o tema. A primeira, dominante nas esferas oficiais, atribui o problema ao mau uso dos recursos hídricos e à falta de modelos modernos de gerenciamento econômico para sua regulação. A outra, amparada da por grupos não-governamentais e acadêmicos, aponta a destruição da biodiversidade em escala global como a gênese da crise. As causas, na verdade, são complementares, e é da fusão dessas duas correntes — e das soluções para as quais elas apontam — que será construída uma saída para o futuro.

O fato é que o crescimento da demanda por água no planeta é quase exponencial: enquanto a população do Planeta dobrou, entre 1900 e 1997, o consumo de água cresceu mais de 10 vezes. Dados de 1940 apontam o consumo médio de água por pessoa de 400 m3/ano enquanto, em 1990, esse número já havia chegado a 800 m3/ano. Esse consumo médio inclui toda a água utilizada por atividades produtivas, além de saciar a sede da população humana.

Não bastasse o comprometimento dos ecossistemas de água doce pela forte pressão da demanda por água para abastecimento e produção, os rios também foram e continuam sendo usados para diluir resíduos provenientes de esgotos, lixo doméstico, efluentes industriais e insumos químicos da agricultura. Estima-se que cerca de 2 milhões de toneladas de lixo são jogadas diariamente em rios e lagos da Terra, e que 12 mil km3 de água estejam poluídos em todo o mundo. Se as taxas de poluição mantiverem o atual ritmo de crescimento, esse número saltará para 18 mil km3 de águas poluídas até 2050!  

Medidas isoladas de saneamento, como expansão da oferta de água para abastecimento público, também aumentam a poluição dos rios. Luiz Lobo, no livro Em busca da universalização afirma que, para cada metro cúbico de água tratada consumida produz-se outro metro cúbico de água servida. Como a implantação dos serviços de coleta e tratamento dos esgotos não ocorre junto com a implantação da rede de água, a água servida antes contida localmente — em fossas sanitárias e afins — passa a ter como destino os cursos d'água mais próximos.

Para agravar ainda mais o quadro, do ponto de vista do mau uso e da falta de gerenciamento, um volume incalculável de água se perde nas tubulações, principalmente por causa de infiltrações e vazamentos. A Europa tem índices de perda em torno de 10%. Algumas localidades da Ásia, como Cingapura, perdem 6%. No Brasil, de acordo com um grupo de pesquisadores da Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), o índice de desperdício chega a 47%, ou seja, cerca de 6 bilhões de m3 de água tratada se perdem por ano!

Embora os números relacionados a consumo, desperdício e poluição sejam contundentes, é marcante, nessas abordagens, a ausência de referências claras à função dos diferentes elementos que integram o ciclo da água. A destruição dos ambientes naturais, por exemplo, raramente é associada à questão, embora as derrubadas dos últimos 20 anos somem milhões de hectares de florestas, em todo o Planeta (pelo menos 16 milhões de hectares de florestas perdidas por ano, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO).

A destruição de florestas afeta o suprimento de água dos lençóis freáticos e reduz a oferta de água nas regiões desmatadas, com impactos diretos sobre os ecossistemas de água doce, como enchentes avassaladoras causadas pela degradação do solo; extinção de espécies (de peixes e outros seres aquáticos); aterramento de nascentes e de áreas alagadiças. Isso cria um círculo vicioso, afetando ainda mais o suprimento do lençol freático e reduzindo a vazão dos rios por assoreamento. As conseqüências da ruptura dos sistemas naturais de produção e de purificação da água ultrapassam os limites dos problemas de gerenciamento econômico. E por uma razão bem simples: ecossistemas degradados e espécies extintas não são reconstituídos pelo engenho humano responsável pela sua destruição.


Na esteira de problemas decorrentes da destruição dos ambientes naturais estão ainda os efeitos do aquecimento global. As mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases na atmosfera já provocam alterações no ciclo anual de chuvas; aumentam os períodos e a intensidade do calor; prolongam secas e estão na origem de grandes tempestades e inundações. As conseqüências de todas essas mudanças sobre os ecossistemas de água doce aumentam — e muito — o risco de escassez.

Também a expansão predatória do uso dos bens da natureza encontra limites físicos concretos e gera novas categorias de escassez. E o aumento do valor desses recursos escassos pressiona a composição dos custos dos produtos que dele necessitam, a ponto de ameaçar a própria capacidade de reprodução do capital investido. Diante disso, surgem mecanismos para regulamentar o uso dos elementos escassos como forma de evitar uma crise maior.

Com a água aconteceu assim. O bem natural passou à categoria de ‘ouro azul’ no Século 21 porque, no atual modelo de consumo, o estoque já não é suficiente. Portanto, passamos a tratar a água como mercadoria, regulando seu uso. Em todo o mundo surgem mecanismos para estabelecer limites e valores para o acesso à água, como mostram os resultados das últimas reuniões mundiais sobre o tema: o documento final do 3º Fórum Mundial da Água, realizado no Japão, em 2003, contém uma extensa lista de recomendações quanto ao gerenciamento dos recursos, com um solitário e lacônico artigo de 4 linhas sobre a conservação da biodiversidade.


A declaração do 4º Fórum, realizado no México, em 2006, é ainda mais discreta. Limitase a afirmar: “notamos com interesse a importância de acrescentar a sustentabilidade dos ecossistemas”.

De qualquer modo, a universalização das discussões, mesmo focadas nos aspectos econômicos, tem o mérito de ampliar a busca por soluções. Muitos países hoje dispõem de leis específicas para os recursos hídricos. No Brasil não é diferente: ocupando o 23º lugar entre os países com maior volume de água disponível por pessoa, o País ainda tem quase 40% de domicílios sem acesso à rede de abastecimento de água e mais de 65% de domicílios sem rede de coleta de esgoto. Os rios são utilizados como lixeiras domésticas e industriais, além de receber enorme volume de solo, via de regra, contaminado com venenos agrícolas. Nas cidades, onde vive grande parte da população brasileira, os ambientes naturais foram degradados ao extremo; as nascentes, soterradas; as várzeas e as margens dos rios, ocupadas por favelas, e os rios se confundem com esgotos a céu aberto.

Para enfrentar o problema, foi aprovada, em 1997, a Lei nº 9433, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Nela, a água é definida como “um recurso natural limitado, dotado de valor econômico”, o que estabelece a base, entre outras ferramentas, da cobrança pelo uso da água bruta. A implementação da Lei ocorre lentamente, mas as iniciativas baseadas no novo conceito de recurso natural dotado de valor econômico produzem frutos interessantes. É o caso da chamada ‘água virtual’, ou seja, a quantidade de água usada na produção de alimentos e, portanto, ‘exportada’ com os produtos. Em 1995, 66% da água doce retirada dos mananciais da Terra destinaram-se à agricultura, segundo a FAO. No Brasil, no mesmo ano, o percentual foi de 61%.


Cálculos de especialistas do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (NEPO-Unicamp) estimam que, em média, cada quilo de soja exige 2 mil litros de água para ser produzido, enquanto a carne bovina consome 43 mil l/kg. A ‘água virtual’ está ainda presente numa infinidade de produtos industriais, como celulose e papel, colocando o País na condição de grande exportador virtual de água. A pergunta que se coloca no centro dessa discussão é: qual a relação custo/benefício dessa exportação virtual para o país exportador?

Dentro de casa, as indústrias mostram empenho em se ajustar a novos tempos. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Agência Nacional de Águas (ANA) publicaram um Manual de Orientações ao Setor Industrial sobre Conservação e Reuso de Água, incentivando a implantação de programas que se revertem em “benefícios econômicos que permitem aumentar a eficiência produtiva, tendo como conseqüência direta a redução do consumo de água, a redução do volume de efluentes gerados e, como conseqüências indiretas, a redução do consumo de energia e de produtos químicos, a otimização de processos e a redução de despesas com manutenção”. Ações como essa — explica o manual — “têm reflexos diretos e potenciais na imagem das empresas, demonstrando a crescente conscientização do setor com relação à preservação ambiental e responsabilidade social”.

A sofisticação do mercado de água mineral é outro fenômeno resultante desse novo olhar. As águas minerais são provenientes de fontes naturais ou artificialmente construídas e possuem composição química ou propriedades físico-químicas distintas das águas comuns. Porém, o consumo crescente de águas minerais não está apenas associado ao diferencial de qualidade e, sim, a dois outros fatores: uma certa desconfiança sobre a ‘água de torneira’ e a praticidade das embalagens portáteis, que podem, inclusive, correr mundo.

O Brasil é o sexto país produtor de água mineral, com uma produção de cerca de 6 bilhões de litros por ano. O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) estima em 600 as fontes autorizadas — 300 das quais em funcionamento — e mais de 3.500 pedidos de novas lavras. Dentro dos limites legais estabelecidos para extração da água mineral, a atividade pode ser um elemento favorável à conservação do ambiente, desde que a fiscalização seja eficiente e suficiente. Do ponto de vista do mercado, é uma vertente que atrai grandes empresas internacionais e tem como líderes empresas como Nestlé e Coca- Cola, com faturamento anual acima de US$ 4 bilhões, cada.

Sob diversas formas, a água já é uma mercadoria e o temor de que esse mercado em expansão signifique o controle de uma substância essencial à vida levou a Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Confederação Suíça de Igrejas Evangélicas (SEK) e a Comissão Nacional Justiça e Paz da Suíça a divulgar, em 2005, a Declaração Ecumênica sobre a Água como Direito Humano e Bem Público enfatizando a água como “bem fundamental para a vida, que não pode nem deve ser privatizado”.

Ênfase no acesso e não no controle da poluição nem na conservação dos ambientes naturais. Disciplina de mercado em lugar de garantia de controle público. Água como mercadoria. Caminhos perigosos que podem levar a um colapso. A canadense Maude Barlow, autora de um dos maiores sucessos sobre o tema — Blue Gold (Ouro Azul) — não acredita que essa regulação econômica conduza a uma solução. “É um problema de conceito. Parece-me que se dá ênfase ao acesso, mas não à escassez ou à contaminação da água. Sem uma legislação bem severa, por exemplo, jamais se poderá parar a contaminação da água”, diz. Para ela, a questão principal é que “a água pertence à Terra, a todas as espécies. É um direito humano fundamental, não uma mercadoria de troca. Deve ser preservada para as futuras gerações. Se é privatizada, quem velará pela natureza? A quem vai interessar que os animais tenham acesso à água? Ou que os ecossistemas se nutram adequadamente?”

Em outras palavras, os indígenas canadenses colocam a mesma questão, em sua Declaração sobre a água, de 2001: “Quando a Água é ameaçada, todas as coisas viventes também são ameaçadas. Nossos corações pranteiam quando testemunhamos as maneiras em que pessoas, por intermédio de governos e empresas multinacionais, destroem a Água devido à sua avidez. Da mesma forma que a Água nos dá vida, temos que lutar pela vida da Água”.

Na verdade, tratar separadamente aspectos econômicos e conservação da natureza conduz a equívocos que levam, inevitavelmente, a uma crise maior. Não se pode considerar como mercadoria um elemento presente em pelo menos 2/3 da composição de quase todos os seres vivos. Estima-se que pelo menos 1% da água doce do planeta está em constante troca nos organismos vivos. A lágrima da criança, o suor do agricultor, a transpiração dos vegetais, a urina dos animais se confundem, e se transformam em nuvem, chuva, rio e fonte. 

A água é uma das condições essenciais à vida, e é resultado de um longo processo de evolução. A vida surgiu na Terra há cerca de 3,8 bilhões de anos e os seres vivos que hoje compõem a biodiversidade do nosso planeta compartilham atributos adquiridos durante essa longa história evolutiva, intimamente associada à água. Esse processo gerou um ambiente propício para o surgimento de espécies cada vez mais complexas, que só puderam sobreviver e se reproduzir porque a Terra já apresentava condições necessárias e suficientes.  

Não somente o surgimento da espécie humana dependeu da evolução de formas anteriores de vida, como a sua sobrevivência dependeu e continua dependendo de condições ambientais adequadas: ar, água, terra firme, temperaturas adequadas, alimento e abrigo. Para o físico Carl Sagan, esse fato não pode ser jamais esquecido: “Somos raros e preciosos porque estamos vivos, porque podemos pensar dentro de nossas possibilidades. Temos o privilégio de influenciar, e talvez controlar o nosso futuro. Acredito que temos a obrigação de lutar pela vida na Terra — não apenas por nós mesmos, mas por todos aqueles, humanos e de outras espécies, que vieram antes de nós e a quem devemos favores, e por aqueles que, se formos inteligentes, virão depois de nós. Não há nenhuma causa mais urgente, nenhuma tarefa mais apropriada, do que proteger o futuro de nossa espécie”.

Soluções comunitárias

O bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, famoso centro gastronômico de comida italiana, também ocupa um lugar muito especial na paisagem da região. Abriga quase 60% das áreas verdes nativas do município, em bosques ainda bem conservados, com inúmeras fontes e nascentes que formam o rio Cascatinha, afluente do rio Barigui, um dos mais importantes da cidade. Em 2002, por iniciativa de organizações comerciais, industriais, religiosas e de lazer do bairro, os moradores reuniram-se para discutir o futuro de Santa Felicidade. Uma das metas estabelecidas na Carta Compromisso de Santa Felicidade foi a despoluição do rio e a proteção das nascentes.

Consciente do forte interesse sobre os terrenos da região, o grupo buscou alternativas que tornassem a proteção a essas áreas tão atraente quanto o mercado imobiliário. E encontraram a resposta num mecanismo até então inédito: a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) de âmbito municipal. A partir da concordância dos proprietários, esses terrenos passam à categoria de áreas de proteção averbadas junto ao Cartório de Imóveis, garantindo sua perenidade. Uma lei de incentivos criada pela Prefeitura Municipal de Curitiba permite que o potencial construtivo destas áreas possa ser transferido para outros locais, conciliando os interesses econômicos e de preservação.  

Para o empresário Eurico Borges dos Reis (foto abaixo), um dos mais entusiasmados defensores da proposta, a troca de potencial construtivo é uma forma de remuneração justa ao proprietário e, ao mesmo tempo, um reconhecimento do valor ambiental dessas áreas. Até agora, as RPPNs somam 20 mil metros quadrados. Cada proprietário de área averbada pode negociar o potencial construtivo (aquilo que vai deixar de construir para proteger o bosque) com construtores ou proprietários em outras áreas da cidade, num valor praticamente equivalente ao preço de mercado da área. 

O esforço dos moradores não parou por aí. Há uma campanha permanente de educação nas escolas e de incentivo para que outros proprietários juntem-se ao programa: a meta é de 100 mil m2 de RPPN até 2008.

Borges dos Reis tem certeza de que ultrapassarão essa meta e que, com medidas saneadoras como a implantação da rede de esgoto em toda a bacia do rio Cascatinha, ganharão um atrativo a mais: um bairro muito verde e um rio cristalino onde já foi até registrada a honrosa presença de um Lutra longicaudis (lontra), espécie que consta na Lista Oficial da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção.


Fonte: Terra da Gente